novembro 10, 2007

Dom Pedro II - Monarquista com espírito republicano


"Dois trajetos de carruagem no meio da noite, rumo a um destino desconhecido, marcaram as dramáticas guinadas da vida de Pedro, o segundo e último imperador do Brasil. Aos 5 anos, foi tirado do único lar que conhecia e levado para um desfile festivo pelas ruas do Rio de Janeiro. Seu pai, Pedro I, ia-se embora do Brasil e deixava para trás o menino que, em prantos, sem noção do que acontecia, era aclamado como o pequeno imperador. Na madrugada de 17 de novembro de 1889, aos 63 anos, mas aparentando mais, perfeitamente consciente do que se passava, ele se apertou com a família no coche que o levou para o cais de onde rumaria ao exílio. O embarque noturno era uma exigência dos representantes da República recém-proclamada – não queriam manifestações de apoio que pudessem redundar em repressão e derramamento de sangue. Provocou uma das poucas reclamações do imperador deposto. 'Não sou nenhum fugido', repetiu duas vezes. No mais, 'nobre dignidade e perfeita segurança de si mesmo caracterizaram a compostura de Sua Majestade; nem ao menos uma palavra de queixa ou reprovação saiu de sua boca', segundo descrição do embaixador da Áustria, conde Weisersheimb, que no dia seguinte acompanhou os netos do imperador até o navio que os levaria para a Europa. Manteve a mesma atitude até a morte, dois anos depois, num hotel simples de Paris.

"Os fatos assim resumidos fazem parte da história que para a maioria de nós está num escaninho da memória rotulado de 'escola' e invariavelmente associado ao adjetivo 'chato'. Na fração de segundo que decorre entre uma palavra e outra, vêm-nos à mente as imagens de um velho barbudo que deu uma festa daquelas, o baile da Ilha Fiscal, seis dias antes de aparecerem uns caras com nomes de rua gritando 'perdeu'. Daí, ele dançou e todo 15 de novembro – uma licença histórica, pois a República só foi proclamada oficialmente no dia seguinte – temos um feriado, de preferência feriadão. Isso para nós, leigos indiferentes. Para historiadores, Dom Pedro II continua mais vivo do que nunca: em qualquer lista que se faça sobre as personalidades mais influentes dos 500 anos de história do Brasil, e quer o opinador se alinhe na corrente crítica ao último imperador ou na dos admiradores de seu reinado, ele costuma disputar o primeiro lugar com Getúlio Vargas. A segunda corrente ganhou recentemente um reforço extraordinário por meio da biografia escrita por José Murilo de Carvalho para a série Perfis Brasileiros, da editora Companhia das Letras. No retrato apaixonado traçado pelo historiador, o homem que governou o Brasil por meio século com 'os valores de um republicano, com a minúcia de um burocrata e com a paixão de um patriota' deixou um exemplo de senso de dever, tolerância, liberalidade e quase inacreditável respeito pela liberdade de imprensa.

"De todas essas características, a mais surpreendente é a fé republicana. Como um monarca, de coroa, cetro e manto, além de mais poderes constitucionais do que sua prima e contemporânea, a rainha Vitória (o Poder Moderador, mas não vamos nem falar nisso para não lembrar dos tempos de escola), poderia defender um sistema de governo que implicava sua própria extinção? Em defesa da tese republicana, pesam escritos do próprio Pedro II. 'Nasci para consagrar-me às letras e às ciências, e, a ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou ministro à de imperador', escreveu ele numa espécie de auto-retrato feito em 1861 no diário habitualmente dedicado a registrar fatos mais rotineiros. Outros trechos reveladores:

• "Jurei a Constituição; mas ainda que não a jurasse seria ela para mim uma segunda religião".

• "A nossa principal necessidade política é a liberdade de eleição; sem esta e a de imprensa não há sistema constitucional na realidade, e o ministério que transgride ou consente na transgressão desse princípio é o maior inimigo do estado e da monarquia".

• "Leio constantemente todos os periódicos da corte e das províncias. (...) A tribuna e a imprensa são os melhores informantes do monarca".

"Também se atribui a Pedro ter dito: 'Eu sou republicano. Todos o sabem. Se fosse egoísta, proclamava a República para ter as glórias de Washington'. Está aí uma das explicações para a sua 'estranha simpatia' republicana, segundo José Murilo de Carvalho: na visão dele, a monarquia era necessária como uma 'fase de preparação' do país para um futuro mais evoluído. Ou seja, apesar da índole tolerante e da inclinação republicana, o imperador, pelo menos em seu apogeu, exercia suas funções com plena segurança de que fazia o melhor para o país – segurança até excessiva, na opinião de críticos contemporâneos como Rui Barbosa. 'Mercê do seu espírito contemporizador e da sua prodigiosa dissimulação, conservou, na mão de ferro enluvada em veludo, um poder sem contrapeso nem limite', escreveu Rui, que virou republicano e ministro – ruinoso – da Fazenda em questão de dias, uma vez proclamado o novo regime.

"O imperador tinha opiniões honrosas sobre praticamente todos os assuntos importantes. Era a favor de eleições livres e ardoroso defensor da educação como instrumento democrático. 'Sem bastante educação popular não haverá eleições como todos, e sobretudo o imperador, primeiro representante da nação, e, por isso, primeiro interessado em que ela seja legitimamente representada, devemos querer', escreveu ele à filha e herdeira, Isabel, ao partir para a primeira de suas viagens ao exterior – a paixão por conhecer o mundo era tanta que se transformou num de seus pontos fracos, politicamente. No mesmo documento ele prega a nomeação de funcionários 'honestos e aptos para os empregos' públicos, embora reconhecendo que 'os interesses eleitorais contrariam, no estado atual, direta ou indiretamente, o acerto dessa nomeação'. Apesar do processo terrivelmente lento para acabar com a nódoa mais abominável de seu reinado, a escravidão, chegou a ser criticado por se 'precipitar' em defender a abolição em plena Guerra do Paraguai. 'A escravidão é uma terrível maldição sobre qualquer nação, mas ela deve, e irá, desaparecer entre nós', escreveu para a mulher com quem manteve a mais permanente relação amorosa de sua vida, Luísa Margarida Portugal de Barros, a condessa de Barral.

"Quando foi coroado imperador, também em clima de aclamação popular, o 'pupilo da nação' ainda era um garoto de 15 anos, obviamente sem a barba patriarcal e a altura imponente – 1,90 metro – da imagem que ficaria mais conhecida. Tinha paixão pelos estudos, provável refúgio para a desolação emocional. Quando começou a viajar ao exterior, já tarde na vida, procurou conhecer seus ídolos, vultos intelectuais como Victor Hugo, Wagner, Alessandro Manzoni, Ernest Renan. Interessava-se por tudo, do Egito antigo aos Estados Unidos modernos, a pátria-mãe do republicanismo, onde seu horror a pompas, e a gentileza que sempre adoça os humores dos jornalistas, deixou boa impressão. 'Conheci muitos figurões, mas nunca vi um cujo tratamento igualasse o de dom Pedro em cortesia', escreveu o autor de seu obituário no The New York Times.

"Da mesma forma que o imperador tinha simpatias republicanas, o marechal Manuel Deodoro da Fonseca simpatizava com a monarquia. 'Eu queria acompanhar o caixão do imperador, que está velho e a quem eu respeito muito', dizia. 'Manuel Deodoro é meu amigo, tenho-o protegido e a toda a família', respondia Pedro, teimoso, quando avisado da agitação que tomava os quartéis – o marechal provinha de uma importante família de militares. No 15 de novembro de 118 anos atrás, Deodoro acedeu ao apelo dos oficiais republicanos, dissolveu o governo e foi para casa dormir, com dispnéia, um tipo de falta de ar associado a doenças pulmonares ou cardíacas. Só no dia seguinte o aviso oficial chegou ao imperador, que havia descido com a família de Petrópolis para o Paço da Cidade. Isabel chorou e Teresa Cristina, a imperatriz, afligiu-se quando Pedro comunicou o teor da mensagem que havia recebido: ele estava destituído, a República, proclamada, e a família real tinha 24 horas para deixar o país. 'Pois, se tudo está perdido, haja calma. Eu não tenho medo do infortúnio', disse, recuperando o controle depois de receber, na madrugada, o aviso de que teriam de sair de imediato, sob o manto da escuridão. Um mês e meio depois do golpe, Deodoro implantou a censura à imprensa, que havia sido tão importante para o movimento republicano. Foi eleito presidente pelo Congresso Constituinte em fevereiro de 1891 e forçado a renunciar no fim do mesmo ano. Afligido pela dispnéia, morreu em agosto de 1892, oito meses depois de Pedro, o último imperador. Neste feriadão, se por acaso alguém pensar nos personagens históricos que lhe deram origem, a imagem evocada provavelmente será a de Pedro II, e não a do protegido que o derrubou. Se essa imagem não fosse apenas a do velho barbudo..."

Fonte: Revista Veja

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